sábado, 29 de dezembro de 2012

Aré, procurador! Égua!

MAJOR SALES BRASIL

Pensei em escrever hoje sobre algumas expressões peculiares do povo paraense. Porém, mexe comigo uma ação ajuizada na Justiça Federal que pede a exclusão da frase “Deus seja louvado” das cédulas do real. Então, decidi reunir as duas coisas em bom “paraensês” e, explicando a parte linguística, escrever ao eminente Procurador Federal dos Direitos do Cidadão, em São Paulo. Vamos lá.

Senhor procurador, nós dissemos “aré” quando soubemos do seu trabalho. Aré é uma expressão falada na região de Vigia, minha terra natal. Não tem tradução, mas tem valor de interjeição de incredulidade ou espanto. Equivale a mais ou menos isto: “Aré! É o fim dos tempos mesmo. Nem Deus sossega. Tem tanta desgraça acontecendo no Brasil, e a procuradoria paulista vai se preocupar logo com isso. Aré!”

Égua, procurador! O senhor vai ter um trabalhão para tornar o Brasil um Estado laico. Isso só existe no papel, sabia? Por que essa implicação apenas com o nome de Deus? Égua!

Calma, doutor, já lhe explico. No Pará, “égua” é uma palavra com várias aplicações. Não me peça para falar da origem, pois há divergência. Quando dita de modo áspero, expressa raiva ou contrariedade: “Você não sabe que só bebo açaí com tapioca por causa do meu dente quebrado? Por que não comprou? Égua!”, diz a esposa, indignada e muito romântica. Mas também pode indicar alegria: “Égua do açaí!”. Agora, se o petróleo paraense estiver muito bom mesmo, Excelência, invocamos o genitor da égua. Assim: “Égua do açaí pai d’égua!”. Há, ainda, o uso de “filho da égua” e, em casos extremíssimos, do “filho de uma égua”, mas deixemos esses pra lá.

É-gu-a! Isso parece perseguição isolada. Para sermos um Estado laico, precisarão ser revogadas também as leis que concedem à Virgem Maria o status de padroeira do Brasil e, no caso particular do Pará, revogar a Lei 4.731/1971, que a proclama patrona em terras paraenses, com direito a honras de chefe de estado. Vossa Excelência sabia, por exemplo, que no Hospital de Base de Aeronáutica aqui de Belém todos são obrigados a participar do Círio interno da repartição, “independente da religião de cada um”, como está escrito no documento nº NS 03/SAR, de 14 de setembro deste ano? “É-gu-a! Não acredito nisso!”, diriam alguns procuradores parauaras, pois quando o paraense fica bastante indignado, contrariando à norma gramatical, ele parte a égua em três pedaços. Fala forte, pausado e muda a acentuação  para a nova sílaba central: E-gú-a!

Para termos um Estado laico será preciso acabar com todas as celebrações religiosas  em repartições públicas do Brasil. Nada de Círio interno, de culto, de missa, de imagens, de cartazes, de velas, de Bíblias expostas, de crucifixos. Nada de incenso. Nada de árvore de Natal, presépios. Aliás, para o senhor procurador tornar o Brasil laico, precisará revogar até feriados e outros dias oficialmente aceitos em nosso calendário. Vamos ver? Sexta da Paixão, Corpus Christi, Dia de Nossa Senhora Aparecida, Dia de Natal... “Acabar com o Natal?? Tá, cheiroso!” é o que alguns leitores dirão quando lerem isto. Explico rapidinho.

“Tá, cheiroso!” é um repelente verbal paraense. Indica oposição de ideias, contrariedade. É empregado quando uma proposta de terceiro é vista como algo impertinente. Talvez sua gênese esteja nos períodos da Belle Époque paraense, quando todo mundo se banhava de perfume aqui em Belém: “Tá, cheiroso! Por que só tirar o nome de Deus do dinheiro? Vossa Excelência deve proceder a um inventário da legislação brasileira nas três esferas da Federação”.

Eras-te! Vai ser preciso fazer uma grande faxina, procurador. Acabarão dias disto e daquilo. “Eras-te” é uma forma pessoal do “eras”. Eras, aqui, é uma interjeição de intensa dúvida e admiração. Deriva de égua. “Eras de ti! Nem te lembraste do meu aniversário. Hebe!”. Não estranhe, Excelência, os mais chiques já estão no terceiro nível do “égua”. O segundo é o “eras”. Não sei como fica agora com a morte da apresentadora. “Hebe! Por que esse procurador só vai tirar o nome de Deus das cédulas do real? Por que não manda retirar também a efígie de Semíramis, a mulher de Ninrode, figura bíblica considerada por alguns a mãe do paganismo?”, protestariam alguns.

Embora eu acredite que Deus nem ligue para essa discussão jurídica, é provável que esteja dizendo agora: “Teité desse povo lá embaixo!” Essa eu explico depois.

Aré, procurador! O Brasil é um país laico mas o seu povo é sobremaneira religioso. Vamos cuidar de outras coisas. Égua!

adbelem

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